Catadores da Vila das Torres se unem e montam acervo público com livros que são jogados fora pelos curitibanos
Publicado em 03/09/2009 | Bruna Maestri WalterA pracinha da Vila das Torres também é lugar de leitura
Um jeito de ampliar a visão do mundo
As pessoas podem se transformar através da leitura de livros. A constatação é do pós-doutor Ezequiel Teodoro da Silva, professor da Unicamp (SP), que dedicou seus anos de estudo à temática da leitura. Ele diz que uma biblioteca amplia a visão do mundo e as fronteiras de participação dentro da própria comunidade. “Acho que um acervo leva com ele a esperança de fazer as pessoas se movimentarem para outros lugares”, afirma. “O livro é o mestre dos mestres. Ele contém possibilidades. Mas sozinho é morto. Quem dá vida para ele é o leitor.”
A biblioteca começou com um desafio. O comerciante José Francisco Sanches, o Baleia, foi dono de depósito de papel por 20 anos. Recebia catadores que chegavam com livros nas mãos, pagava e logo tirava as páginas para reciclagem. Sem dó. E se alguém quisesse ler algum livro? Bem, o jeito era ir até o Centro, na Biblioteca Pública.
O desafio partiu de um amigo, Carlos Roberto Teles, o palhaço Chameguinho. Ele teve a ideia de montar um acervo e provocou Baleia. Desafio aceito, o projeto logo andou. Até porque Baleia não é homem de deixar as coisas para amanhã. E quando põe uma coisa na cabeça, dá jeito de conseguir. Prova disso é que uma vez invocou de ir ao Japão. E perdeu a aposta quem disse que ele não chegaria lá.
Baleia, a seu modo, já era um empreendedor da área da cultura. Sem Lei Rouanet nem nada parecido, montou um pequeno museu no bar onde vende espetinhos. Lá mantém fotos antigas da Vila das Torres
Há um ano e meio, o comerciante também virou urbanista: transformou uma ribanceira da vila em praça. Pneus pintados viraram mesas; e pedras foram transformadas em assentos. Tudo nas cores da bandeira nacional. “Vila das Torres: você consegue”, diz a placa da praça. Virou lema.
No começo, Baleia não conseguiu: o espaço era ocupado por bêbados. A biblioteca viria também para mudar isso, e ajudar a transformar a praça num espaço de leitura. O anúncio da construção da biblioteca foi feito em 13 de junho, data instituída como Dia da Cultura na Vila das Torres. Baleia logo parou de mexer com papel e esvaziou um galpão onde ficariam os livros. Teve de cobrar aluguel de R$ 400, dividido por parceiros da comunidade, como a Fundacen, fundação sem fins lucrativos que encaminha jovens para cursos.
Pechincha daqui...
O desafio era montar o acervo. No começo, Baleia comprava de quem lhe oferecia. Pechinchando, conseguiu muito livro gastando apenas R$ 10. Mas depois decidiu que tudo teria de ser feito na base da doação. E a maioria dos catadores passou a entregar os livros de graça quando os achava.
“E como tem livro!”, diz Chameguinho. “Acho que Curitiba está sendo campeã de jogar livro fora. Não sabia que o curitibano desperdiçava tanto livro”, lamenta. Ele calcula que, em dois meses, uns 1,5 mil livros foram tirados do lixo e levados à biblioteca, que também recebe obras doadas por entidades.
A catadora Ana Maria Marqui, por exemplo, encontrou 40 livros num único prédio. Quarenta? “Sim, 40. E tinha uns pesados, que quase nem consegui levar”, diz. “Cansei de achar livros de advogados, grossos, novinhos.” Quando as crianças entram em férias na escola, então, o número de livros encontrados no lixo aumenta ainda mais.
São poucos os livros dos catadores que não estão sendo doados à biblioteca. Uma exceção são as obras que a filha da catadora Ana Maria usa para pesquisa escolar. “Por que não?”, pergunta Chameguinho, na frente do portão da casa da vizinha, quando ela diz que aqueles não vai doar, pelo menos por enquanto. “É que minha filha gosta de estudar vendo os DVDs dela, ouvindo música”, responde Ana Maria. Chameguinho entende. “É, na biblioteca não deixo ouvir música”, confirma.
... sonha dali
Desde o começo do funcionamento da biblioteca, há dois meses, 45 pessoas fizeram ficha para poder pegar livros. Mas a comunidade quer mais. Os planos para o espaço são ambiciosos, mas dependem da ajuda de mais gente. Principalmente dos mais jovens. Chameguinho tem como seu braço direito uma jovem de 17 anos, Kauanna Batista, que entrou no Projeto Jovem Cidadão, criado para diminuir a violência e dar oportunidade aos jovens. Eles se conheceram quando Chameguinho foi tentar comprar fiado no supermercado da mãe dela. O fiado não saiu, mas a parceria, sim. Juntos, eles querem instalar seis computadores para cursos de informática; dar brindes para os moradores que mais leem; criar a Biblioteca Andarilho, em que um carrinho irá percorrer a comunidade levando livros; e exibir filmes para a comunidade.
Também querem atingir a marca de 5 mil livros. Por enquanto, há cerca de 2 mil nas prateleiras. Ali agora repousam, depois de escapar do lixo e da reciclagem, Machado de Assis, Euclides da Cunha, José de Alencar e Sérgio Buarque de Holanda. Descansam bem depois de um intenso dia de visitas à sua nova casa.
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