segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Brasil não sabe ouvir criança vítima de abuso


País obriga meninos e meninas que passaram por histórias traumáticas a repetir sua história até oito vezes. Profissionais não são preparados para função

Publicado em 14/09/2009 | Paola Carriel

“Por favor, me deixa. Não me pergunta mais nada sobre isso. Eu queria esquecer”. Essa frase, dita por uma garota de 8 anos, levou pesquisadores brasileiros a investigar formas diferentes de colher depoimentos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Hoje, meninos e meninas abusados sexualmente têm de repetir a história por até oito vezes para diferentes autoridades em processos judiciais que levam anos. Tudo para tentar pôr o agressor na cadeia. E muitas vezes é preciso ficar frente a frente com ele. A repetição causa o que especialistas chamam de revitimização, dano que pode até ser pior do que a própria agressão.

Estudo inédito, realizado por pesquisadores brasileiros em parceria com a organização não-governamental Childhood, aponta apenas 28 países com formas especializadas de tomar o depoimento de crianças. No Brasil, não há nenhuma legislação sobre o assunto. O estudo “Depoimento sem medo (?) – culturas e práticas não-revitimizantes” aponta que apenas 20 comarcas em oito estados (Rio Grande do Sul, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia, Bahia, Rio Grande do Norte e Acre) possuem técnicas diferenciadas para ouvir meninos e meninas. São iniciativas isoladas, fruto da determinação de juízes, promotores e ativistas da área. A regra para a maioria é ser ouvido em ambientes hostis: salas escuras com profissionais despreparados.

Repetição

Em média, uma criança precisa repetir sua história de agressão entre seis e oito vezes. Geralmente, a denúncia começa no Conselho Tutelar; depois, é encaminhada para a delegacia. Ainda estão no caminho o Instituto Médico-Legal, o Ministério Público e o Poder Judiciário, onde a vítima pode ser ouvida várias vezes e até mesmo ter de fazer acareação com o agressor. E tudo isso leva anos.

Grande parte dos casos de violência sexual não gera provas físicas, só psicológicas. O depoimento de uma criança vítima de abuso é aceito como prova material, mas a cura fica mais longe em função da necessidade de lembrança constante. O abuso sexual em crianças é especialmente danoso porque elas estão em fase de desenvolvimento – a violência pode deixar sequelas eternas.

Enquanto o pedófilo usa técnicas refinadas para atrair a criança, a Justiça a trata como um adulto e exige que fale do assunto como tal. A incoerência do sistema começou a ser tratada com maior frequência desde a Convenção sobre os Direitos da Criança, realizada pela Organização das Nações Unidas em 1989. No Brasil, o debate ganhou corpo na última década. Atualmente um projeto de lei tramita no Congresso Nacional para estabelecer diretrizes sobre o assunto. Em Porto Alegre, uma decisão tomada pelo Tribunal de Justiça no mês passado permitiu a chamada “produção antecipada da prova”, permitindo que uma menina vítima de abuso não precisasse repetir novamente o seu drama.

Técnicas apresentadas no estudo mostram como juízes no Brasil e no mundo têm tentado coletar o depoimento sem danos. São utilizados profissionais capacitados para tal atividade, como psicólogos e assistentes sociais. Delegados, juízes e promotores também passam por treinamento. Em alguns países a criança é ouvida somente uma vez. Em uma sala ambientada, o profissional faz uma entrevista com a criança usando recursos lúdicos, como brincadeiras, desenhos e filmes. A habilidade permite detectar o que houve com o mínimo de trauma para meninos e meninas. O processo é filmado e usado como prova.

Em outros casos, usa-se a câmara Gesell. Ao invés de a criança ser ouvida na audiência comum, ela fica em uma sala especializada composta por espelhos que permitem visualizar a partir de um lado o que acontece no outro, mas não vice-versa. Na sala ficam somente o menino ou menina e o profissional responsável. A entrevista também é gravada e serve como prova.

GAZETA DO POVO 8:09 minutos

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