Há muitos avanços na luta contra a violência no Brasil. Contudo, ainda vivemos um triste círculo vicioso. Com base em alguns mitos sobre como vencer a violência, crimes bárbaros têm servido de estímulo para a sociedade e os meios de comunicação pressionarem o Estado para aumentar as atitudes repressivas.
A necessidade emergencial de lidar com a violência, entretanto, acaba servindo de justificativa para medidas mais violentas, pouco eficazes e que não contribuem de fato para a diminuição da criminalidade em nosso país. Na tentativa de romper com esse ciclo, o Instituto Sou da Paz criou a campanha “Cinco mitos que precisam ser quebrados”, com dados e informações concretas para qualificar o debate público e conscientizar a população sobre a situação da segurança pública.
- Mito: Investir em prevenção não traz resultados concretos.
Realidade:
Resolver o problema da educação ou da saúde, que certamente impactam no fenômeno da violência no país, pode levar até mais de 20 anos. No entanto, isso não significa que não há o que fazer de imediato.
- Ao contrário do que muitos pensam, a polícia já tem informação suficiente sobre onde, em quais dias da semana e em que horários ocorrem os crimes violentos e quem são suas vítimas e atores preferenciais. Em São Paulo, sabemos que a maioria dos homicídios acontece na periferia. Em alguns distritos da periferia, a taxa anual de homicídios chega a 68 por 100.000 habitantes (caso da Brasilândia, na zona norte). Ao mesmo tempo, no distrito de Moema, por exemplo, ocorre só 1 homicídio por 100.000 habitantes. Também sabemos que os homicídios se concentram à noite, nos finais de semana e na grande maioria dos casos envolvem jovens entre 18 e 25 anos.
Se olharmos cuidadosamente para esses bairros, perceberemos que eles têm muito em comum. Não possuem áreas de lazer nem de cultura, há problemas na qualidade do ensino nas escolas, não há espaços públicos com atividades para crianças e adolescentes, faltam creches para que as jovens mães deixem seus filhos, há centenas de bares como única opção de lazer e o Estado de uma forma geral não se mostra presente.
O que fazer?
É fundamental organizar as informações de cada bairro: identificar quais são as ruas mais problemáticas e quais as motivações principais dos crimes. Muitas vezes, não é possível resolver todos os problemas urbanos desses bairros, mas é possível iluminar várias ruas, limpar praças ou criar quadras de esportes. Essas medidas mais simples já diminuirão estupros, reduzirão a venda de drogas em algumas regiões ou contribuirão para evitar que jovens e crianças fiquem vulneráveis aos crimes.
Muito se fala nos programas de redução da violência bem sucedidos de Nova Iorque ou Boston, mas raramente são lembradas ações fundamentais para o sucesso rápido dos programas, como o Basquete à meia-noite e a recuperação de espaços públicos degradados.
Projetos sociais que ofereçam alternativas para a população jovem podem de fato, e em pouco tempo, reduzir os crimes. Basta elaborar, em parceria com a comunidade, um bom diagnóstico dos problemas existentes em cada região. Quanto maior for o envolvimento de atores diversos como a polícia, a administração regional e os comerciantes do bairro, por exemplo, mais efetivo será o programa.
Um exemplo é a cidade de Diadema, que, por muitos anos, esteve na primeira posição entre as cidades com maiores índices de homicídios do Estado de São Paulo. Em 2001, a Secretaria de Defesa Social implementou um projeto de mapeamento da criminalidade. Através de sistemas eletrônicos é possível acessar todas as informações sobre ocorrências policiais do município de como, onde, quando e de que forma os crimes foram cometidos.
Depois de estudar os dados, notou-se que 60% dos homicídios ocorreram das 23:00 às 06:00, em bares e arredores que tinham poucas opções de lazer, e que a faixa etária mais freqüentemente envolvida em homicídios era a dos jovens.
Assim, a Secretaria implementou diversas iniciativas. O Clubinho de Férias, desenvolvido pela Guarda municipal junto com as secretarias de Educação, cultura, e lazer e com patrocínio de empresas e organizações da cidade atende crianças e adolescentes e aborda temas como civismo e cidadania assim como, proporciona atividades esportivas e culturais. No projeto Adolescente Aprendiz, adolescentes recebem noções do mundo do trabalho e de práticas administrativas, além de serem preparados para vivências em diferentes setores empresariais, da Prefeitura e em atividades comunitárias. A Lei Seca impõe o fechamento de todos os bares depois das 23 horas. Além disso, 98% das ruas e avenidas foram iluminadas.
Os resultados foram: uma queda no ranking das cidades mais violentas no estado de São Paulo de 1o lugar para 13o lugar, redução dos homicídios em 50% e redução dos homicídios entre jovens em mais de 60%.
2) Mito: “Rota na rua” é a única solução imediata para conter o crime.
Realidade:
Quando a população e alguns políticos pregam a “Rota na rua”, querem uma polícia com licença para matar, que roda as ruas com sirenes ligadas e armas para fora, achando que isso realmente assusta os bandidos. Durante muitos anos, o estado de São Paulo viveu um triste ciclo de aumento da violência e da insegurança: os homicídios, roubos e furtos aumentavam a cada ano. Nesse mesmo período, a polícia matou muitas pessoas, o número de policiais no Estado aumentou 30% e nunca se investiu tanto em presídios .
- Com a “Rota na rua”, portanto, temos uma polícia que aumenta a tensão existente entre a comunidade e a polícia, viola as leis, se afasta da população,e não gera resultados efetivos.
O que fazer?
Em todos os países que venceram de fato o crime, houve investimento na melhora da polícia, para que ela atue de forma inteligente, com foco na prevenção, usando da melhor maneira seus recursos e cada vez mais próxima dos cidadãos.
Desde o ano 2000, os homicídios vêm caindo drasticamente em todo o estado de São Paulo, e muitos especialistas apontam que algumas mudanças adotadas pela Polícia contribuíram para essa queda.
Entre outras inovações, podemos citar a criação do Infocrim, sistema que mapeia as ocorrências criminais e permite que a Polícia planeje suas ações e distribua seus efetivos a partir destes dados. O policiamento comunitário, caracterizado pela maior interação entre os policiais e cidadãos, visando o estabelecimento de uma relação de confiança e cooperação, tem sido implementado em diversos locais, contribuindo para a redução dos crimes e o aumento da segurança. Em vez de temer a polícia, a comunidade se dispõe a fornecer informações sobre o cotidiano da região, desde problemas corriqueiros até crimes graves.
- Um bom exemplo é o Jardim Ângela, distrito de São Paulo que em 1996 foi considerado pela ONU o lugar mais violento do mundo por causa de sua taxa de homicídios. Foi ali que foi implementada a primeira base de policiamento comunitário da cidade de São Paulo, seguida por outras duas. Os policiais que atuam nestas bases passaram por cursos sobre direitos humanos e cidadania. Implementaram patrulhamento de todas as ruas de noite, palestras nas escolas e a participação dos polícias em eventos na comunidade entre outras mudanças. A confiança na policia é visível: as bases são procuradas por pessoas que pedem ajuda para solucionar problemas variados, e a violência diminuiu. Em junho de 2005, o Jardim Ângela chegou a comemorar 100 dias sem nenhum homicídio .
Como se vê, dizer que a polícia não pode “sair matando e torturando”, não é algo que se diga para “proteger bandidos”. É simplesmente um requisito essencial para que, dentro de uma sociedade democrática, a polícia seja capaz de estabelecer uma relação de confiança e segurança com a população, o que traz resultados concretos na melhoria da segurança pública.
3)Mito: Aumentar as penas desestimula o crime
Realidade:
A grande repercussão de alguns crimes e a crença geral de que penas maiores intimidam os bandidos provoca um anseio da sociedade pelo aumento e endurecimento das penas.
Imagine que um bandido está na janela do seu carro prestes a cometer um assalto. Será que ele assaltaria se a pena para roubo fosse 6 anos de cadeia e não assaltaria não se a pena fosse 10 anos? Com certeza, nesse momento, o fator determinante não é o tamanho da pena. Provavelmente esse assaltante cometeria o crime de uma forma ou outra, pois a chance de ser preso é mínima. Assim, é a certeza ou não de ser punido o que estimula ou desestimula o crime e não o tamanho e a dureza da pena.
Um bom exemplo é a edição da Lei dos Crimes Hediondos, que determina que autores desses crimes não têm direito a uma série de benefícios, como a redução da pena por bom comportamento e ir de um estabelecimento fechado para um semi-aberto. Desde a criação da Lei, a lista de crimes considerados hediondos não parou de aumentar e apesar disso a maior parte desses crimes cresceu.
Outro dado importante é que mais de 93% de nossa população carcerária foi presa em flagrante. Isso significa que não há investigação. Quem não é preso na hora em que comete o crime tem chances mínimas de ser preso. Além disso, apenas no Estado de São Paulo há mais de 170.000 mandados de prisão que não foram cumpridos mais que a atual população carcerária do estado.
O que fazer?
Está claro que a resposta passa longe das “mudanças e mais mudanças” nas leis. A impunidade não cessará pelo fato de termos penas altíssimas, mas que nada resolvem. É importante nos preocuparmos em melhorar a qualidade da polícia e a agilidade da justiça e, assim, aplicar as penas que já existem naqueles que hoje cometem crimes e não são pegos. Além disso, é fundamental se esforçar na modernização da polícia civil, responsável pela investigação dos crimes. Isto significa investir mais em computadores, rádios, mapeamento e contato com a população, não só em armas e viaturas. A divisão das polícias em duas, uma investigativa e outra repressiva, torna nossa tarefa ainda mais ingrata. É fundamental trabalhar pela integração das forças policiais e fazer com que a Polícia Militar e a Polícia Civil troquem informações cotidianamente e se ajudem mutuamente. Esses esforços geram maior efetividade e menos impunidade.
4) Mito: A melhor ou única maneira de punir é prender - por quanto mais tempo melhor
Realidade:
Pena não é instrumento de vingança. Os objetivos da pena são prevenir uma conduta criminosa ou reintegrar à sociedade aqueles que tenham cometido um crime. Em momentos de crise, políticos e animadores de rádio e televisão sempre pregam a implantação de penas maiores como grande solução para nossos problemas. Isso não funciona, custa caríssimo e induz a sociedade na direção errada.
No Brasil temos uma população carcerária de cerca de 200 mil pessoas e que cresce a cada ano. A população carcerária dobrou entre 1995 a 2003 mas os índices de criminalidades (roubo, furto e estupro) ainda continuam crescendo . O investimento feito em construção de prisões em nosso estado nos últimos anos não encontra precedentes na história. O número de vagas dobrou e mesmo assim ainda há falta de vagas. O déficit de vagas hoje é maior que a lotação do estádio do Maracaña (122 mil pessoas). O Brasil tem a segundo maior população carcerária da América e o crime continua crescendo implicando em necessidade sem fim de investimentos nesta área.
Infelizmente, contudo, sabemos que muitos daqueles que saem da prisão chegam a cometer crimes muitas vezes piores do que o que os levou para lá. 40% dos presos são reincidentes e 14,8% deles já passaram por unidades de internação da Fundação CASA (a antiga FEBEM). Esses números revelam a incapacidade das unidades prisionais de ressocializarem os presos, bem como a ineficácia do sistema de internação de jovens infratores em reeducá-los. Portanto, se não há dúvida de que a punição é necessária, também não há de que a prisão atual é sinônimo de fracasso. A sociedade não se sente segura e o preso dificilmente têm de fato capacidade de se inserir produtivamente quando deixa o sistema.
O que fazer?
O conceito de uma boa política penal passa pela criação de um sistema pautado pela eficiência da aplicação de uma pena adequada e não pela suposta ameaça causada por uma lei mais dura. Neste sentido, é fundamental criar penas menores e facilmente aplicáveis a todos que cometem mesmo pequenos crimes, e resguardar a pena de prisão para os que realmente ameaçam fisicamente a sociedade. Um passo importante é ampliar a aplicação de penas alternativas para crimes mais leves. Assim, criminosos que não oferecem perigo não precisariam lotar nossas penitenciárias, ficando em contato com criminosos perigosos.
Em 2004, na rebelião no presídio de Benfica, onde morreram 20 presos, 17 deles tinham sido condenados por pequenos delitos. Um deles foi preso depois de atirar pedras em carros em Copacabana. O próprio juiz da Vara de Execuções penais admitiu que pelo menos nove presos não deveriam estar na Casa de Custódia de Benfica. Ou seja, dos 20 presos que morreram, 17 deles poderiam estar cumprindo penas alternativas.
Os custos para a privação de liberdade são estimados entre R$700,00 e R$1.200,00 mensais para cada vaga. Aplicando as penas alternativas, o custo de um preso cai para R$70,00. Mais importante que a redução de custos é que o índice de reincidência despenca de 42,5% para 17,5%. A pessoa que recebe uma pena dessas tem de prestar algum trabalho para ajudar a sociedade, como a limpeza de muros e praças, a ajuda em hospitais, a prestação de serviços em ONGs, e ajudando o trânsito. Com isso, há uma reintegração muito mais efetiva.
No caso de crimes graves devemos adotar a prisão, mas é preciso que esta sofra severas modificações. A prisão não pode ser um depósito de criminosos por respeito aos direitos humanos dos presos, que é obrigação constitucional e moral de nosso país, e também por respeito ao direito à segurança de todos nós que estamos do lado de fora. Além de uma prisão que reintegre, precisamos de um sistema de penas progressivo. Com isso, a pessoa cumpre sua pena em etapas e em diferentes tipos de estabelecimentos, cada vez mais próximos da liberdade.
Desta maneira, a pessoa cumpre uma pena dura, mas tem a possibilidade de se educar, aprender na prisão e adotar um comportamento cada vez mais próximo de sua vida habitual fora das grades.
Para completar este processo, é necessário também que o Estado crie programas de reintegração de ex-presidiários (egressos) facilitando a volta à liberdade e em direção a uma vida social produtiva.
Finalmente, temos de contar com toda a sociedade para quebrar preconceitos e contribuir para a integração do egresso na sociedade. Caso contrário, teremos as famosas “escolas do crime” em funcionamento, e os infratores voltando à vida da criminalidade assim que deixam a prisão.
5) Mito: O que mata no Brasil é arma ilegal e quem mata é bandido.
Realidade:
A imensa maioria dos crimes que acontecem no Brasil é cometida com armas fabricadas no Brasil e de calibre permitido! Segundo relatório da Anistia Internacional, em 63% dos homicídios ocorridos no Brasil nos últimos dez anos foram utilizados revólveres e armas de pequeno porte.
Um estudo feito no Rio de Janeiro pelo ISER no ano 2001, com armas utilizadas em crimes e apreendidas pela policia mostra que mais de 80% das armas eram brasileiras e mais de 90% de calibre permitido. Ou seja, mesmo que o bandido não compre arma em lojas, as armas mais utilizadas para roubar e matar em nosso país são aquelas que entraram no mercado de forma legal. A figura do traficante usando um fuzil ou metralhadora é assustadora, mas representa um numero ínfimo de mortes se comparado às vitimas dos tradicionais revolveres calibre 38. Estas armas chegam às mãos dos bandidos após serem roubadas de pessoas que as compram achando que vão se defender ou são desviadas por empresas de segurança e até pela policia. A cada ano, só no Estado de São Paulo, 11.000 armas legais são roubadas ou furtadas e passam para as mãos de criminosos.
Além disso, mais da metade dos homicídios não são cometidos por bandidos em assaltos ou chacinas. Por exemplo, analisando 2335 mortes por armas de fogo que aconteceram em 2004, apenas 97 foram resultado de latrocínio (roubo seguido de morte). Todas as semanas, centenas de pessoas morrem assassinadas por indivíduos sem antecedentes criminais e que se conhecem. São pessoas que perdem a vida em situações banais: brigas de transito, em bares ou ainda assassinadas dentro de casa pelos familiares.
O que fazer?
Controlar o comércio e a circulação de armas no país e promover o desarmamento da população! Assim, é possível diminuir o numero de armas nas mãos dos criminosos e reduzir o número de pessoas que perdem a vida por motivos banais.Desde 2003, o Brasil conta com uma das mais modernas leis de controle de armas do mundo, o Estatuto do Desarmamento. Entre outras coisas, o Estatuto proibiu o porte de armas para civis (ou seja, as pessoas não podem mais andar armadas) e estabeleceu critérios mais rígidos para a compra e utilização de armas de fogo.
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