quarta-feira, 26 de maio de 2010

O perigo mora em casa

O perigo mora em casa

Pesquisa das Nações Unidas revela temor dos brasileiros com a violência dentro da família. Para 90%, sensação é de que a criminalidade está aumentando
Publicado em 26/05/2010 | Vinicius Boreki




Nove entre dez brasileiros – 90,1% – consideram que a violência está crescendo. No Paraná, a sensação de insegurança supera a média nacional: 91,5%. Pior: para 23% dos entrevistados de todo o Brasil, o medo é de que o agressor esteja dentro da própria família. Após a óbvia ação dos criminosos, mencionados por 56%, os brasileiros temem a violência doméstica. No estado, o índice, apesar de pouco menor, também sustenta a segunda colocação, à frente da violência relacionada ao trânsito, às escolas e à comunidade onde se vive. Os dados integram o Relatório de Desenvolvimento Humano 2010, divulgado ontem pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) na área da violência contra a criança, o adolescente e a mulher, Mirian Botelho Sagim explica que a percepção da sociedade faz sentido porque a violência familiar de certa forma gera todos os outros tipos de agressões. “Se a família fosse estruturada, não haveria problema no trânsito ou na escola”, afirma. A forma de resolver o problema talvez explique as razões de preocupação por parte da população. “É fácil resolver o problema do trânsito, basta colocar mais guardas e vigiar os motoristas. Na família, cada um deve educar, cuidar e dar exemplo para o filho. É mais complexo”, diz.

Daniel Derevecki/Gazeta do Povo
Daniel Derevecki/Gazeta do Povo / “Os assaltantes haviam levado um óculos e tentei correr atrás deles. Mas vi que não valia a pena e passei dois dias trabalhando com medo.” Maurício Marchiorato, gerente de uma ótica que foi assaltado no centro de Curitiba Ampliar imagem

“Os assaltantes haviam levado um óculos e tentei correr atrás deles. Mas vi que não valia a pena e passei dois dias trabalhando com medo.” Maurício Marchiorato, gerente de uma ótica que foi assaltado no centro de Curitiba

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Dono de ótica em Curitiba já foi assaltado cinco vezes

Marina Fabri, especial para a Gazeta do Povo

Em Curitiba, o aumento da violência é um tormento com o qual comerciantes e moradores aprenderam a conviver. Proprietário de uma ótica no Centro, Alberto Pereira Jardim é quase um colecionador de assaltos. Foram cinco vezes: três dentro da loja e duas fora – a última lhe rendeu prejuízo de R$ 2 mil. “Já aprendemos até a identificar alguns grupos de ‘figurinhas carimbadas’”, conta. Como medida de segurança, as lojas da região fecham as portas no mesmo horário, por volta das 19 horas.

Maurício Marchiorato, gerente de outra ótica, chegou a correr atrás de uma dupla de assaltantes. A valentia durou pouco, enquanto o temor persistiu. “Eles haviam levado um óculos, vi que não valia a pena e passei dois dias trabalhando com me­­do”, relata. Uma das principais mudanças de hábito foi parar de transportar dinheiro vivo na carteira, além de orientar as vendedoras da ótica a não ficarem sozinhas no balcão e evitar sacar grandes quantias em dinheiro. Nos comércios, vitrines estão sempre bem fechadas, e o alarme é instrumento obrigatório.

Enquanto os homens são as principais vítimas de homicídios dolosos, mulheres entre 35 e 64 anos correspondem ao perfil de pessoas que sofrem lesões corporais. “A hipótese de que o ambiente familiar, pelas ligações afetivas, protegeria seus membros mais vulneráveis tem se mostrado bastante falha”, segundo o relatório. Crianças e adolescentes também integram o perfil das vítimas de violência familiar. Conforme o estudo, 19% das mulheres brasileiras afirmam ter sofrido violência doméstica e familiar. Em 81% dos casos, homens com quem têm relações íntimas são, simultaneamente, seus algozes. Duas razões motivam a maior parte das ocorrências: ciúme e álcool.

As principais e piores consequências disso, na maior parte dos casos, não conseguem ser vistas a olho nu. São psicológicas. “Essa violência não é esquecida, enquanto a marca física desaparece”, afirma Mirian. Em geral, mulheres e crianças vítimas de agressão têm baixa autoestima e dificuldade em fazer escolhas. “Você não se vê como pessoa. E nem se considera alguém merecedor de coisas boas”, acrescenta. Em sua pesquisa, a pesquisadora descobriu que 60% das mulheres que apanhavam dos companheiros sustentavam suas famílias. Tinham dificuldades, contudo, em se desvencilhar do relacionamento turbulento.

Coordenador do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Luis Flávio Sapori ressalva que o fato de a violência familiar estar em destaque não significa o aumento de ocorrências. “É preciso fazer comparações com outras pesquisas para se afirmar isso”, diz. Os números caracterizam, no entanto, que o problema pode ser maior do que se imagina. “Se quase um quarto da população tem esse temor, quer dizer que uma boa parte também o vivencia”, completa.

Contradição

Outro dado do relatório chama a atenção ao apontar um dado contraditório: os dois principais valores dos brasileiros são o “bem-estar do próximo” e o “bem-estar da humanidade e da natureza”, fatores que caminham no sentido oposto das agressões familiares. Coor­denador da pesquisa, Flávio Comim considera a contradição normal. “Nós chamamos isso de desengajamento moral. As pes­soas, em geral, não apreciam as implicações de seus atos. Tendem a falar mais do que fazer”, opina. E a intenção da pes­­quisa é justamente indicar esses paradoxos. “Existe esse hiato a ser resolvido. As pessoas precisam ser cutucadas”, diz.

Comim entende que, para muitos brasileiros, a morte está caracterizada como único tipo de violência possível. Na questão da família, contudo, as agressões mostram justamente o contrário. “O descaso pode ser uma forma de violência, como na negligência. Os números mostram que a maneira pela qual as famílias estão vivendo requer reflexão”, afirma.

FONTE GAZETA DO POVO 26/5/10 às 8:47h

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